23/05/2022

Reunião pública dá visibilidade ao grave quadro de violência obstétrica no estado do RJ

“A violência obstétrica é um problema que nos coloca frente a frente com a expressão do racismo no Estado brasileiro”. A declaração integrou a fala de Lia Manso, representante de Criola na reunião pública na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro no dia 12 de maio. O encontro foi articulado pelo Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate à Violência Obstétrica da ALERJ e presidido pela deputada estadual Renata Souza.

A reunião pautou as inaceitáveis taxas de mortalidade materna no estado do Rio, morte evitável que vitima especialmente mulheres e pessoas negras. O índice mais que dobrou no estado do RJ, saltando de 73,5 em 2019, antes da Covid-19, para 155 em 2021, de acordo com os dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) filtrados pela plataforma de informações da Secretaria Estadual de Saúde, o Tabnet.

Na capital, de acordo com o painel EpiRio, da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), o aumento foi de 80,97 mortes para cada 100 mil nascidos vivos em 2019 para 153,4 em 2021. O crescimento foi ainda mais acentuado em municípios com menor índice de desenvolvimento humano, como aponta o Tabnet. Em Duque de Caxias, subiu de 97,9 para 267,5 no mesmo período. Já em São Gonçalo, foi de 67,1 para 213,1.

A situação emergencial vivenciada por pessoas negras que gestam em situação de cárcere também foi destacada por pesquisadoras em saúde e representantes da sociedade civil, que lembraram do sistemático descumprimento de recomendações do Ministério da Justiça (Nota Técnica n.º 17/2020) para prevenção à violência obstétrica nas unidades prisionais.

“No momento de parir, as gestantes presas sequer são transportadas em ambulâncias. Muitas dão à luz dentro do cárcere por negligência das agentes carcerárias”, denunciou Graziela Sereno, do Mecanismo de Combate à Tortura. Fruto de dois anos de trabalho, o Fluxo de Atendimento à Gestante e Lactante é um instrumento que poderá orientar o trabalho da Secretaria de Administração Penitenciária. Porém, a SEAP não enviou representante à reunião pública que pudesse receber o documento em mãos.

Penha da Silva, mulher negra que descobriu a gestação ainda no cárcere, trouxe um triste relato das inúmeras violências que enfrentou até o parto de alto risco. “Fiquei algemada numa cama, sem posição, tendo as contrações sozinha e sem apoio de ninguém. Fiquei 4 horas sentada após o parto sangrando. Só vi o bebê dois dias depois, e o tempo todo sendo xingada e discriminada por ser presa”, contou.

“É importante sempre reposicionar que a violência obstétrica não é um caso isolado, não é um caso individual e não está dissociado de uma continuidade de violência quando pessoas que gestam buscam atenção pré-natal durante o puerpério, durante o parto, no pós-parto, na lactação. É também uma programação institucional que não se limita às equipes de saúde ou de assistência, mas que demanda sim um reposicionamento. Inclusive o compromisso de políticas públicas quanto ao encarceramento de pessoas. Nós temos o Marco da Primeira Infância que é descumprido deliberadamente, e também uma lei de 2018, que dá direito à pessoas que estão em situação de cárcere e que são gestantes, lactantes e puérperas a estarem em casa ou em medidas menos gravosas do que a prisão – e estamos falando de pessoas antes mesmo da condenação, pessoas que estão respondendo ao processo ainda”, disse Lia Manso, de Criola.

Flávia Brasil, da Defensoria Pública do RJ/NUDEM, destacou que o termo violência obstétrica está sendo interditado assim como o aborto. “A gente tem que identificar e trabalhar com políticas públicas para evitar essa interdição. O Estado brasileiro ainda não cumpre tratados e convenções internacionais de direitos humanos sobre o tema”, disse, lembrando do caso Alyne Pimentel, que aconteceu há 20 anos.

Em documento, o GT faz as seguintes recomendações para enfrentamento à violência obstétrica e morte materna: treinamento das equipes de saúde; enfrentamento do racismo, sexismo, lesbofobia e transfobia expressos institucionalmente; fortalecimento dos serviços da rede de aborto legal e divulgação ampla de sua existência, criação de campanhas para conscientização da população e das equipes sobre violência obstétrica em campanhas institucionais nas unidades; divulgação massiva dos contatos para denúncia e acolhimento; monitoramento de dados relacionados à violência obstétrica colhidos por indicadores com especial atenção ao quesito raça/cor pelo executivo e fiscalização pelos legislativos junto às unidades que podem sinalizar os níveis de violência obstétrica contra mulheres cis e homens trans, tais como: restrição de alimentação no trabalho de parto; analgesia epidural; uso da manobra de Kristeller; uso de procedimentos não farmacológicos para alívio de dor; movimentação no trabalho de parto; número de consultas de pré-natal e tempo médio das consultas.


Segundo dados do dossiê Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva, de Criola, um dos agravantes para esse cenário é a desigualdade racial no acesso à saúde das gestantes. Cerca de 73% das mulheres pretas acessam o pré-natal, enquanto entre brancas esse número sobe para 84,2%. É considerado pré-natal insuficiente quando a gestante realiza menos que sete consultas. No estado do Rio de Janeiro, 26,2% das gestantes realizaram menos de sete consultas de pré-natal. Na Região Metropolitana, a cidade do Rio de Janeiro apresenta um índice mais baixo de pré-natal insuficiente, cerca de 18%. Entretanto, em cidades como Belford Roxo e Duque de Caxias quase metade das mulheres não tiveram pré-natal adequado: 45,6% e 43,2% respectivamente (CASA FLUMINENSE, 2020). Entrevistas para o mesmo dossiê demonstram que coletivos de mulheres negras no estado do RJ desconhecem o que caracteriza violência obstétrica.


Por Júlia Tavares, de Criola

 

Conheça também:

Site para denúncia de violência obstétrica e cartilha sobre o tema 
CPI Hospital de Cabo Frio: Reunião de Instalação, 1ª audiência pública, 2ª audiência pública, Visita técnica, Reunião de encerramento.
Criação do Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate à violência obstétrica

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