06/06/2019

O racismo como determinante política

Por que quis falar neste momento do período eleitoral? Porque sinceramente acredito que fico mais sereno ao olhar para trás, ao mesmo tempo que só vislumbro ações presentes e futuras quando faço esse movimento e porque, sinceramente, não sei nada do futuro, mas pela maneira como se constrói muito do passado você compreende como chegamos a esta situação que pode ser dita como no mínimo lamentável. 

Durante o período eleitoral me empenhei em divulgar informações sobre o candidato opositor de Haddad em grupos da baixada pelo facebook. Informações reais e que não tinham relação com o PT. Na verdade, informações que estavam no próprio programa do candidato. AÍ para mim ficaram claras algumas coisas: primeiro, desde o primeiro turno havia uma cortina de fumaça sobre a eleição, sob a forma  de eleição contra a corrupção e antipetismo. Bem sinceramente, estou convencido que as duas são uma possível negação, inclusive, preferida por nós do campo da esquerda.

No primeiro turno as pessoas tinham diversas possibilidades de votar em candidatos que não eram do PT e que não tinham seus nomes associados a supostas acusações de corrupção (considerando inclusive projetos tão reacionários como o atual em curso). Inclusive candidatos que nunca foram parte executiva do governo do PT e as pessoas não votaram. Como bem disse Guilherme Boulos, o voto do primeiro turno poderia ser em qualquer um, mesmo para aqueles que faziam parte ou não do “ele não”. Portanto, já aqui aparecem os indícios de que há algo muito mais complexo.

Bem, se pararmos para pensar na campanha de Bolsonaro, nas suas frases anteriores a campanha oficial e reeditadas várias vezes, na forma como ele se coloca (ou não se coloca), nós podemos identificar: a) a postura neopentecostal, basta vermos pastores de sucesso e fama midiática (portanto um dos lugares por onde começa a se estruturar o lugar para o surgimento desse tipo de líder); b) o segundo é óbvio, a mídia, mas não no sentido do antipetismo e afins, na verdade o sensacionalismo que ganhou palco e poder nos últimos, pelo menos dez anos, com foco em uma espécie de terror, que pronuncia em alto e bom tom que “bandido bom é bandido morto” e sabemos a quem eles se referem. Jamais houve frase semelhante que se referisse a Eike Batista, por exemplo, e que elegeu policiais (lembrando que nossa polícia ostensiva é militarizada), construindo uma narrativa maniqueísta e com foco numa suposta guerra que na verdade não passa de massacre. Até aí poderíamos ter a eleição de outros sujeitos conservadores\liberais que também, em alguma medida, pretendem endurecer com a “bandidagem”.

Mas por que não outro? acontece, que se formos ver a identificação que primeiro foi sendo criada pela retórica liberal e neoliberal da resolução dos conflitos pelo indivíduo, ganham força as ideias de armar-se e o empreendedorismo de si mesmo levado às raias da segurança individual – uma fantasia, assim como chamar dono de carrinho de pipoca de empresário, que se intensifica quanto mais de fato se torna mais precária a vida da população negra e pobre.

E aí para mim é necessário  olhar para uma realidade bastante concreta: muitos eleitores desse personagem são negros e pobres (e não estou preocupado com classe média, para mim não há surpresa nesses votos). Ora, teoricamente, a pauta dele é racista, misógina e LGBTTQIfóbica. Lembremos que o sujeito usou a expressão arroba para se referir a pessoas negras, o que não redundou em sanção pelo judiciário e muito menos em qualquer tipo de questionamento mais profundo pela sociedade, ao contrário a sua referência às pessoas negras como peças soou como uma piada, ou fala “deselegante”.

Ao longo dos anos, mesmo tendo avanços em relação a estas questões, não houve de fato uma revisão profunda sobre os impactos do racismo construído e reproduzido historicamente como um dos pilares de sustentação da dominação e exploração no Brasil e disseminado nas classes populares e o que isso significa em termos políticos? é bem simples: o branco é bom, é melhor, é mais inteligente e nesse caso um branco que ridiculariza meu pertencimento racial  pode ser louvado, porque ele sabe que somos ruins e inferiores.

Curiosamente, um dos fatores que mais jogou peso nesta eleição e poderia, de longe, ser o fator a impedir a candidatura desse personagem, contou contra nós e não foi pelo clássico, entoado inclusive por parte da esquerda, que as pautas raciais, de mulheres LGBTTQI, fragmentam lutas ou qualquer coisa do gênero.

Não. É justamente pelo nosso racismo e misoginia históricos, estruturais e internalizados, ao contrário do que se pensa, não discutir esses temas de forma profunda junto às classes populares jogou contra nós.

Nós avançamos nos últimos anos e, aliás, uma parte desse reacionarismo deve-se a isso, mas o reacionarismo das elites é esperado. Não é novidade nenhuma. O que surpreendeu foi o nível de reacionarismo entre as classes populares.

Não vou dizer aqui que todos são fascistas, mas acredito que a construção sócio histórica brasileira marcada por uma égide do privado e da posse como em poucos lugares é uma máxima que se incrustou na existência inclusive daqueles muito longe de gozar dos privilégios burgueses, mas que interiorizaram inferioridade, a necessidade de punição e de precisarem, eminentemente, de um senhor de escravos.

Sim, porque este personagem nada mais é do que uma edição de terno e gravata de um senhor de escravos. Isto tudo se justifica claramente a partir do seguinte: nunca passamos a limpo a escravidão. Nunca conseguimos emplacar uma discussão profunda sobre as reminiscências da escravidão na construção da violência, inclusive institucionalizada. Nossas ditaduras foram permeadas por um conjunto de torturas que, não à toa, nos remetem ao escravismo (basta a alusão ao pau de arara e ao pelourinho).

Passamos o tempo naturalizando essa experiência histórica dizendo que é parte do passado e que pouca influência tem sobre o nosso presente… bem, fica fácil entender porque uma parte da população se nega acreditar na existência do holocausto. É simples: nunca tratamos dos nossos holocaustos, extermínios, genocídios. Nunca revisamos o que significou em termos genocidas o processo colonial do império e república em relação a população negra e indígena e o que simbolizam os quilombos e os quilombolas.

 A fala deste personagem sobre um quilombo foi completamente sintomática ele usou “arroba” e “procriar”. Duas palavras que remetem a animais. A justiça entendeu que isso foi apenas “desagradável”, quase como uma falta de etiqueta.

Este é o problema, uma parte das mudanças dos últimos anos foram cosméticas. Não que isso seja responsabilidade exclusiva dos movimentos sociais, até porque sabemos as dificuldades de avançar com a discussão, contudo, as mudanças cosméticas foram, por um lado, suficiente para o alerta da classe dominante brasileira cujo cerne de sua visão de mundo é a escravidão e o servilismo.

 E por outro incomodou uma parte das classes populares, porque para muitos essas mudanças significam? Não saber porque agora as pessoas não querem se comportar e alisar o cabelo, não querem fingir que “não são negras”, porque de “uma hora para outra” estão dizendo que há racismo se eu sempre convivi com gente “branca”, ora para a maioria das pessoas negras pauperizadas o mundo é apresentado como branco símbolo de beleza e ordem e negro, símbolo de feiura e desordem e sabemos como no Brasil temos apreço a ordem e ao chicote, então torna-se inteligível essa eleição, infelizmente precisamos admitir não é só as elites e a classe média que clamam pelo retorno a ordem.

Curiosamente a bandeira geral do personagem candidato era ou seria o nacionalismo, contudo, o nacionalismo nesse caso se refere muito mais a construção do ódio que o “povão” tem de si mesmo e em nome de uma classe dominante branca que remete a marca senhorial.        

 No Brasil, somos exímios em fingir ser da ordem do natural aquilo que é basicamente construído historicamente por uma burguesia escravocrata, sexista e reproduzido a largo por todos nós.

O passado escravista é lido, muitas vezes, como parte de um pensamento natural da época, o que justifica a sua existência e reprodução. Naturalizamos a ditadura porque ninguém sabia o que de fato estava acontecendo e é por isso que não conseguimos aprofundar e estender nossa crítica ao passado e ao seu museu de grandes novidades que se apresenta diante de nós.

Porque ele é em si um fato natural fruto de no máximo manipulações perversas ele nunca é algo construído sócio historicamente pelas pessoas que ali estiveram e todos que se rebelaram contra ele devem ser tratados ora como vítimas ora como bandidos, mas nunca como sujeitos que se rebelaram contra o véu inebriante do “natural” da ordem, assim tudo aqui vai sendo natural, sem ter nada de natural.

O humano é eminentemente social. Não há humano que se funde diretamente com a natureza, embora, obviamente, haja diferentes arranjos nessa relação uma vez que nossa existência depende, em última análise, daquilo que chamamos  natureza. Porém, não há no globo terrestre humanos que não realizem intermediações entre si e a natureza. Todos fazemos, em alguma medida, um movimento de criação que está presente nas mais diversas expressões. Ao tentar retroceder para o ideário do natural, o que se faz atualmente, cria-se uma lógica fictícia cujos interesses econômico políticos são escamoteados sob o discurso da fé, da biologia (que nada tem de natural, uma vez que ela também é construída sociohistoricamente).

Portanto, ninguém quer ver: uma vez que não é natural, uma vez que é eminentemente social e inequivocamente coletiva a construção de qualquer forma de organizar a vida, temos admitir nossa responsabilidade individual e principalmente coletiva sobre os rumos da nossa sociedade.

Não é uma força obscura ou iluminada que move o nosso conjunto de decisões. Somos nós. Mas se admitirmos que somos nós teremos de ser responsáveis pela coletividade quer queiramos ou não. Ora, isto significa que teremos de pensar por exemplo o que significa ser negro uma vez que uma estrutura de poder nos subjuga, inclusive, trazendo vantagens aqueles que são brancos mas não são detentores de posse.

Teremos de questionar os pressupostos  da inferioridade, ou da propensão criminal, ou do por que “deus quis assim”. Na verdade, vamos ter de assumir, como no poema de joão cabral de melo neto, a parte que nos cabe neste latifúndio. Não só em destinar a cova rasa, mas de atirar, de mandar atirar, de cavar a cova de jogar a terra e esconder o cadáver.

Mas o que esperar do Brasil?  Uma sociedade profundamente “colonial” cujo o olhar de sua intelectualidade renomada, de sua burguesia, etc sempre foi para qualquer lugar que não fosse o próprio Brasil. Queremos ser franceses, ingleses, alemães, americanos, russos, italianos, qualquer coisa, menos pertencentes a este lugar.

 Ao mesmo tempo, e de alto a baixo da pirâmide social, somos uma sociedade profundamente idealizada de si mesma. Olhamos no espelho e nunca queremos ver o que somos, temos uma maioria de população negra, mas preferimos ser retratados como brancos e mesmo com as cotas o que fazemos é fingir que negros são uma minoria. Temos uma moral sexual extremamente conservadora enquanto nossas relações reais estão baseadas em assédios cotidianos e estupros. Proclamamos um amor pela vida no slogam do não ao aborto, mas convivemos diariamente com homens que abandonam mulheres grávidas sem a menor crise de consciência. Somos levados ao espetáculo midiático do pedófilo, em compensação, no dia a dia crianças sofrem abusos de familiares todos os dias. Temos um pavor da criança ver dois homens se beijando, mas não temos nenhum problema com crianças verem mortes todos os dias. É uma fuga para um ideal inexistente que persiste.

 O desejo de se iludir e de dizer que há um outro que não é como nós e é ele que faz essas coisas, nós não somos isso (que se diga o clássico o racismo sem racista). Não queremos ser aquilo, mas gostamos do fato de que fingir ser protege de enfrentar a realidade concreta.

Neste sentido, é perfeitamente inteligível a eleição dessa pessoa personagem. Ele é, em minha humilde opinião, o ser que representa nossos ideais e desejos de não ver, de não ser e por fim de não sermos responsáveis.

Mas podemos ficar tranquilos! Isto em minha humilde opinião não é um problema exclusivamente brasileiro, contudo, um problema do mundo. Talvez por isto a extrema direita religiosa no ocidente torna-se a saída: ela promete que não precisamos nos preocupar ou nos sentirmos responsáveis, porque há um outro que move naturalmente os fios de nossa história. Infelizmente, morreremos sob a ilusão da morte natural, na esperança da fatalidade e de uma vida maravilhosa em outro mundo, enquanto somos executados por um fuzil.                       

Ao mesmo tempo, é inegável, e é possivelmente o que sabemos, que as pessoas negras permaneceram. Não porque somos individualmente fortes, mas porque nossas práticas coletivas de (re) existência sobreviveram ao sequestro, ao extermínio, a tentativa de apagamento histórico.

Qualquer um que conheça um pouco dessa história, que aliás não é só dos negros, mas parte fundamental mundial, sabe que criminalização e execução foi/é parte do nosso cotidiano desde as incursões do século XV sobre África. Não é também projeto novo no Brasil nossa transmutação em símbolo da “bandidagem” nacional, que o diga a criminalização da capoeira e dos terreiros durante vários anos (até se tornarem mercadoria lucrativa, para a burguesia nacional). Então o retorno a esta criminalização não é nova.  Fomos nós os alvos preferenciais da Lei de vadiagem.

Os massacres são incontáveis, embora devessem ser contados: desde Porongos no Sul, Balaiada no nordeste passando pela Candelária, chacina de Vigario Geral, Mesquita e tantas outras que não caberiam nestas páginas. Não há novidade em sermos mortos.

Há novidade, e esta é o que para mim é mais importante, em como vamos nos organizar e mobilizar para permanecer lutando, quais estratégias iremos construir e quais ações iremos tomar. Uma pista pode estar sempre no nosso passado, nos segredos e no “olho no olho” que manteve viva a nossa existência material e simbólica.

Não tenho dúvidas, os movimentos que vejo, mesmo de longe, advindos particularmente das favelas e periferias, são essenciais para o futuro. Não adianta construir projetos políticos, o mais progressistas que forem, sem discutir racismo com a população para a qual se direcionam estes projetos. Ou alguém acha que essas eleições teriam o mesmo resultado se o diálogo com negras e negros, principalmente das periferias, tivesse sido diferente?

O círculo é algo bastante importante em todos as expressões de arte e cultura negra. Não é à toa nesta forma está a circulação do saber da troca, do olho no olho, do conhecer e reconhecer, do ouvir e falar. Por exemplo, nas batalhas de hip hop está presente rapidez de raciocínio\palavra que corta todos no entorno.

Minha preocupação é que estamos vendo pouco as formas de (re)existir de negras e negros. Honestamente, e com todo o respeito que tenho pelo espaço acadêmico uma vez que sou parte dele, não dá para acreditar que academia, ou a nossa inserção na academia, vai fazer diferença sozinha. Não dá para acharmos que propostas que falam da garantia de direitos, para populações que nunca tiveram acesso a direitos seja suficiente. Repito, ainda não sei o que será o pós personagem eleito, mas acho que podemos olhar para o que tem sido o Brasil para mais da metade da população brasileira. Afinal, convenhamos, isto não começou nos últimos dois anos.   

Joilson Santana Marques Junior – assistente Social, mestre em saúde coletiva IFF/FIOCRUZ e em Ciências na área da saúde coletiva pelo Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ, doutorando do PPGSS/UFRJ. Tem experiência em educação em saúde, serviço social e assistência social. Atua principalmente nos seguintes temas: relações raciais, gênero e diversidade sexual.

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