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Agenda de Transformação do Sistema de Justiça

O sistema de justiça tem papel central na reprodução da violência racial sistêmica.

Esse papel tem sido exercido em processos de desumanização das pessoas negras, reforço de estereótipos prejudiciais e degradantes e de associação da negritude à criminalidade e delinquência que acabam por legitimar a violência racial, a violência e letalidade policiais.

A publicação da Agenda de Quatro Pontos pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas criou uma oportunidade de discutir no âmbito dos países a necessidade de criação de um plano de ação abrangente para superar a violência racial sistêmica.

Esta agenda oferece soluções políticas e recomendações para construir uma outra narrativa sobre as reformas do sistema de justiça. As medidas e propostas devem ser consideradas pelas instituições do sistema de justiça tendo em vista a criação de uma agenda concreta de transformação das práticas de violência racial:

1. Práticas policiais

As práticas policiais devem garantir justiça igualitária e ser apoiadas por evidências. Essas práticas devem seguir os padrões de direitos humanos e não provocar conflitos e mortes ilegítimas nas comunidades.

As práticas policiais não devem incluir nem permitir o perfilamento racial. O policiamento deve ter um compromisso claro com os direitos humanos, aderir parâmetros internacionais de uso da força e promover medidas de responsabilização da violência e da letalidade policial, o que inclui processos criminais e civis.

Propostas

Fortalecimento e efetividade de sistemas de controle e prestação de contas internos e externos, garantindo órgãos internos de controle com autonomia funcional e órgãos externos independentes
– Fortalecimento das Corregedorias externas à polícia, com autonomia funcional e financeira e participação da sociedade na escolha da pessoa para o cargo
– Fortalecimento das Ouvidorias externas à polícia, como órgãos autônomos e independentes no sistema de segurança
– Fortalecimento da capacidade institucional de órgãos independentes de supervisão, reforço e responsabilização do Ministério público no controle externo da atividade policial; 
– Fortalecimento dos órgãos forenses, protocolos para investigação e atuação conjunta dos diferentes órgãos alinhados com os parâmetros internacionais
– Treinamento adequado com regulamentação para uma formação permanente e obrigatório, revisão curricular, ampliação do currículo, revisão de métricas e produtividade 

2. Integridade e ética no trabalho do Ministério Público

O trabalho do Ministério Público deve ser imparcial, justo e comprometido com a administração transparente da justiça. Promotores de justiça tem um papel central em reproduzir vieses e estereótipos contra réus negras e negros. Os sistemas de avaliação, fiscalização e controle do trabalho do Ministério Público são nesse momento ineficazes para agir contra esses vieses e negligenciam o comportamento e atitudes racistas

Os padrões e controle de desempenho de promotores de justiça priorizam a produtividade numérica: volume de processos, taxas de condenação, etc. Essa valorização da produtividade na prática incentiva que o grande número de processos resulte em altas taxas de encarceramento. Membros do Ministério Público devem ser incentivados a usar alternativas penais qualificadas e eficazes como uma ferramenta para promover comunidades seguras.

Propostas

– Avaliação dos custos sociais do encarceramento em massa e revisão profunda dos padrões de condenação do Ministério Público de forma que a medida mais grave, o encarceramento, seja priorizada para o crimes mais graves
– Padrões de avaliação do trabalho de promotores menos focado em condenação e mais voltado a premiar ações que dêem preferência à suspensão condicional do processo, alternativas ao encarceramento, considerando as disparidades raciais geradas pelo sistema de justiça criminal
– Criação de mecanismo de fiscalização e supervisão da sociedade civil, autônomo e independente do trabalho do Ministério Público
– Supervisão e avaliação do trabalho de promotoras/promotores de justiça tendo em conta enviesamentos raciais implícitos nos padrões de condenação. 
Produção de dados públicos sobre o processo de tomada de decisão de promotoras/promotores de justiça.
– Compromisso de agentes políticos em desestimular o encarceramento em massa e criar alternativas à prisão.

3. Defensoria Pública e acesso à justiça

Cabe à Defensoria Pública lutar para que os processos que decidem sobre a liberdade e os direitos das pessoas que sobrevivem ao racismo sistêmico sejam particularmente justos e responsáveis.

Defensoras e defensores públicos devem considerar todas as opções e estratégias que estão à sua disposição para confrontar práticas nocivas contra a população negra dentro do sistema de justiça, em especial o sistema de justiça criminal.

As práticas punitivistas e de sentenças desproporcionais à gravidade dos crimes devem ser duramente rechaçadas. As prisões estão superlotadas de pessoas que não representam nenhuma ameaça para suas comunidades. A Defensoria Pública tem um papel crucial em garantir à população capacidade de resposta reforçada contra as violações de direitos resultantes do racismo.

Propostas

– Fortalecimento das Defensorias Públicas, visando a presença da instituição em todas as comarcas do país;
– Produção de dados sobre o processo de tomada de decisão de defensores públicos, desagregados a partir de marcadores sociais da diferença, como gênero, raça e etnia, situação socioeconômica, etc.
– Supervisão e avaliação de defensores públicos tendo em conta enviesamentos raciais implícitos nos padrões de atendimento e serviços prestados, com especial atenção para as áreas criminais, de justiça de família, direitos das mulheres negras e crianças e adolescentes.
– Implementar mutirões de acesso à justiça e direitos por meio de programas comuns às Defensorias Estaduais e Defensoria da União que sigam diretrizes como: territorialidade; enfrentamento ao racismo patriarcal cisheteronormativo; acesso transversal à justiça.
– Criação de núcleos temáticos nas Defensorias Públicas do país dedicados à tutela coletiva de direitos e litígio estratégico; reforço da litigância estratégica da defensoria com foco no enfrentamento ao racismo institucional, reparação e resposta às violações de direitos da população negra.
– Criação em todas as Defensorias Públicas de núcleos dedicados exclusivamente ao enfrentamento ao racismo.

4. Decisões e Processos mais justos antes dos julgamentos

O direito ao devido processo legal deve ser garantido com igualdade para firmar o compromisso do sistema com a liberdade e a justiça. Decorre do devido processo legal o direito à presunção de inocência após a prisão. Para a população negra, as garantias processuais e a presunção da inocência são violadas cotidianamente.

Pessoas negras e de baixa renda são mantidas em prisão preventiva por tempo indeterminado. O uso abusivo da prisão preventiva normaliza uma ideia de segurança associada à prisão ilegítima e em massa das pessoas negras. É necessário restaurar e garantir o direito à presunção de inocência com igualdade.

As práticas judiciais devem encorajar a justiça, evitar o encarceramento sempre que possível e enfatizar o recurso a alternativas penais.

Propostas

– Compromisso com a redução do encarceramento e abolição de prisões preventivas desnecessárias
– Produzir dados sobre o padrão de uso das prisões preventivas de forma a orientar a supervisão do seu uso
– Criação de programas de alternativas às condenações criminais e alternativas ao encarceramento
– Garantia dos direitos de mulheres grávidas e mães de crianças de esperar o processo em liberdade
– Utilização de alternativas à prisão nas sentenças. Criação de diretrizes para sentenças estimulando os usos de alternativas à prisão
– Produção de dados sobre os padrões das sentenças judiciais em casos que envolvem direitos das pessoas afrodescendentes

5. Alternativas à prisão

Enquanto as prisões estão superlotadas, os motivos do superencarceramento não são eficazes em termos de garantir mais segurança. A narrativa da segurança é empregada para reforçar práticas punitivas e estereótipos prejudiciais contra a população negra.

As políticas do Sistema de Justiça são dirigidas ao punitivismo e desresponsabilizam suas autoridades em relação à ineficiência, discriminação racial sistêmica e altos níveis de encarceramento. O bem-estar e a garantia de políticas públicas às comunidades devem ser priorizadas em relação ao encarceramento. As políticas de justiça devem incentivar a redução da taxa de encarceramento, trabalhar para eliminar a discriminação racial e reparar comunidades que foram prejudicadas pelos altos índices de encarceramento e violência policial.

Propostas

– Compromisso de investimento nas comunidades em vez de encarceramento
Proibição de adoção de medidas de avaliação produtiva do sistema de justiça que resultam em maior encarceramento
– Reforçar, monitorar e publicar relatório sobre cumprimento de recomendações do CNJ em relação a alternativas na prisão
– Garantia do direito de mulheres grávidas e mães a alternativas à prisão
– Comunicação mensal da listagem completa com os dados atualizados de pessoas que gestam custodiadas e lactantes, e demais grupos que fazem jus a prisão domiciliar para o Ministério Público – Estadual, para as Varas de Execuções Criminais, para as Varas de Execuções Penais, para Defensoria do Estado e para OAB (nota técnica nº 17/2020/DIAMGE/CGCAP/DIRPP/DEPEN/MJ)
– Exigir que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP divulgue relatórios de fiscalização e monitoramento de direitos humanos nas unidades prisionais de toda a federação e atualize suas resoluções em perspectiva de enfrentamento e denúncia das práticas derivadas do racismo patriarcal cisheteronormativo no sistema prisional.

6. Condições decentes na prisão e pós-prisão

As terríveis condições das prisões deixam as pessoas sobreviventes do cárcere em condição física e emocional muito piores do que quando entraram. As condições de detenção não podem violar os direitos humanos básicos dos indivíduos encarcerados. A fim de promover uma reintegração bem-sucedida, deve-se incentivar a redução da reincidência. As condições de detenção devem ser decentes, oferecer reabilitação e respeitar os direitos humanos das pessoas encarceradas.

Propostas

– Inclusão da participação de sobreviventes do cárcere nas decisões sobre políticas, diretrizes e recomendação ao sistema de justiça e prisional
– Fortalecer a existência, orçamento, recursos humanos e infraestrutura para o funcionamento, participação popular e controle social do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, bem como fortalecer ou criar Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura.
– Fortalecimento das inspeções independentes do sistema prisional e do funcionamento independente dos mecanismos de combate à tortura
– Monitoramento e publicação de relatórios sobre cumprimento das diretrizes do CNJ de respeito aos direitos humanos nas prisões
– Criação de programas vocacionais, opções de moradia e empregos para as pessoas sobreviventes do cárcere
– Interromper e monitorar a violação de direitos sexuais e reprodutivos de mulheres negras encarceradas (cis e trans)

7. Justiça em condição de igualdade para mulheres e meninas negras

Mulheres negras estão submetidas a um regime de discriminações e violência baseado em estigmatização; estereótipos prejudiciais de gênero e raça; práticas, atitudes e comportamentos nocivos por parte dos agentes de Estado.

Vários fatores impedem que as mulheres acessem e obtenham justiça em condições de igualdade, conforme assinalado pelo Comitê para Eliminação da Discriminação contra as mulheres, entre eles destacam-se: analfabetismo, tráfico de mulheres, conflito armado, deslocamentos forçados, migração, chefia da família pelas mulheres, viuvez, condição de saúde, privação de liberdade, criminalização da prostituição, afastamento geográfico, e estigmatização das mulheres negras.

A condição de indígena, a raça/cor/etnia, a situação socioeconômica, religião ou crença, estado civil e/ou maternal, idade, localização urbana/rural, estado de saúde, deficiência, a identidade como mulher lésbica, bissexual ou transgênero ou pessoa intersexual são fatores que se entrecruzam e condicionam a experiência das mulheres com as instituições do Estado e especialmente com as instituições e profissionais da justiça.

Há um duplo movimento que reforça a desvantagem e a negação de direitos das mulheres negras no sistema de justiça. Ao mesmo tempo em que o racismo e a violência afastam as mulheres de recorrerem às instituições do Estado, essas instituições também falham sistematicamente em atuar com justiça, transparência e devida diligência nos casos, desde o atendimento inicial até a fase final dos procedimentos, reproduzindo a experiência da violência e estigmatização.

Propostas

– Proibição do uso da força sobre mulheres e crianças negras
– Criação de mecanismos disciplinares que assegurem que agentes de seguranças envolvidos em violência sexual não sejam reintegrados ao trabalho
– Produção de dados das interações das mulheres negras com o sistema de justiça, de forma a revelar os padrões de comportamento abusivo e racismo institucional
– Estímulo a boas práticas em perspectiva racial gênero no sistema de justiça e treinamento permanente adequado de operadores
– Produção desagregada de dados sobre violência doméstica no processos judiciais
– Desenvolver em parceria com o movimento de mulheres negras nos estados para desenvolver mecanismos, métodos e processo sustentáveis para apoiar o acesso à justiça das mulheres negras

8. Respostas contra o crime de racismo

O sistema de justiça deve ser capaz de identificar, reconhecer e punir adequadamente o crime de racismo. As autoridades da justiça também têm o dever de identificar, tornar visível e punir a motivação racista que subjaz a determinados crimes, especialmente crimes graves de atentado à vida e à integridade física de pessoas negras.

De maneira geral, as autoridades do sistema de justiça negligenciam o crime de racismo e a motivação racista de crimes, como se vê nos casos de abuso da força, violência e letalidade policial. O padrão de prova nos crimes de racismo exige que as autoridades não negligenciem a produção de prova sobre a motivação racista nos crimes, o que é geralmente negado e ignorado, gerando discrepâncias e um padrão de ineficácia na aplicação da lei contra o racismo no sistema de justiça.

Cabe às autoridades do sistema de justiça produzir prova adequada do crime de racismo e construir relações de confiança com as vítimas e suas comunidades.

Propostas

– Revisar procedimentos de produção de prova nas diferentes fases do processo do crime de racismo; elaborar e garantir a implementação de protocolo para investigação e acusação do crime relacionados com racismo, assegurando medidas de investigação da motivação racista dos crimes;
– Garantir que profissionais do sistema criminal tenham uma compreensão compartilhada a partir das experiências das comunidades alvo do racismo e de crimes com motivação racista.
– Responder os incidentes racistas, reforçando a posição pública do sistema de justiça contra o racismo, mesmo quando as especificidades de uma investigação não possa ser discutida;
– Desenvolver e fornecer formação permanente para profissionais da justiça reconhecerem e classificarem adequadamente o crime de racismo, atuando contra preconceitos e estereótipos discriminatórios que levam os profissionais a negligenciar esses crimes.
– Registrar adequadamente os crimes de racismo e outros crimes marcados pela motivação racista e disponibilizar os dados ao público.
– Tornar mais fácil e seguro para que todas as vítimas denunciem crimes de racismo.-

9. Composição e organização do sistema de justiça

É urgente a adoção de medidas efetivas para o fomento da inclusão e da maior representatividade de pessoas e mulheres negras nas profissões da justiça.

A implementação de políticas afirmativas, apesar de imprescindíveis, são, por si, insuficientes para construir uma política judicial efetivamente antirracista. É preciso, sobretudo, reduzir a distância entre os “usuários” ou “alvos” das instituições judiciais – negros e pobres, em sua grande maioria – e as suas elites dirigentes, promovendo mecanismos permanentes de escuta, participação e diálogo.

De forma consistente, a experiência tem demonstrado que apenas a presença permanente e qualificada da sociedade civil, movimentos sociais e academia nos espaços de gestão e poder do sistema de justiça é capaz de produzir mudanças institucionais significativas e, sobretudo, com impacto na defesa de direitos humanos.

Além de uma organização menos hermética, que concilie a necessária autonomia com uma maior porosidade às demandas e vozes da sociedade, é preciso que o sistema de justiça se comprometa com um repertório de práticas antirracistas em seus múltiplos níveis de governança e atuação. Essas políticas e ações devem ser estruturadas e monitoradas sempre com participação social, permitindo a avaliação periódica dos seus resultados e consequente revisão dos seus marcos de funcionamento.

Propostas

– Expansão do modelo de Ouvidoria externa da Defensoria Pública para todas as instituições do sistema de justiça;
– Criação de conselhos consultivos da sociedade civil em todas as Ouvidorias externas do Sistema de Justiça;
– Alteração da composição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) visando a paridade entre representantes da sociedade civil e Estado;
– Regulamentação do processo de indicação de conselheiros do CNJ prevendo participação da sociedade civil, publicização de prazos, critérios de escolha e possibilidade de impugnação de candidaturas;
– Implementação de políticas afirmativas nas indicações aos Tribunais Superiores e Conselhos Nacionais do sistema de justiça;
– Ampliação do quadro de pessoas negras operadoras do direito atuantes no Judiciário, promovendo seu ingresso na Magistratura, Defensoria Pública e no Ministério Público, inclusive por intermédio de políticas afirmativas em concursos, quinto constitucional e concessão de bolsas para estudantes negras(os) ingressarem nas Escolas de Magistratura, da Defensoria Pública e do Ministério Público.

Conheça o conteúdo completo da Agenda Antirracista para Transformação do Sistema de Justiça na página do Multiversidade.

Esta página integra os resultados do projeto Justiça para mulheres negras: enfrentando a violência racial e de gênero e ampliando direitos, financiado pelo Baobá – Fundo para Equidade Racial. A iniciativa tem como objetivo fortalecer lideranças negras e suas organizações para o desenvolvimento de ações políticas de combate ao racismo sistêmico. Dessa forma, Criola busca contribuir com ferramentas que auxiliem no enfrentamento do impacto da violência racial, da criminalização e das desigualdades raciais, bem como com a construção de mecanismos para a efetivação e garantia dos direitos para as mulheres negras.

Criola 30 anos
Baobá

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