24/08/2020

NOTA DA FRENTE NACIONAL CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DAS MULHERES E PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO

Quanto mais sofrimento e morte falta para nossa gente perceber que a criminalização do aborto é expressão da violência racista e sexista no Brasil?

Nesse momento em que a sociedade brasileira está impactada pelas falhas na proteção de uma criança de 10 anos, vítima de repetidos estupros por quase metade de sua vida, e ainda a negação do direito que essa menina negra, pobre, do litoral do Espírito Santo, encontrou até a realização do procedimento assegurado por lei e determinado em decisão judicial, é inadiável falar de aborto e violência racista contra meninas e mulheres.

As cenas do último domingo 16 de agosto, na cidade de Recife, Pernambuco, onde a menina foi acolhida, contaram que o corpo das mulheres, desde sempre, foi e é tratado como um tribunal onde machistas, racistas, misóginos e políticos fundamentalistas se outorgam o direito de decidir por elas e, até mesmo, realizar linchamentos morais em praças públicas (ou na porta de hospitais, como aconteceu nesse caso), muitas vezes instrumentalizando a fé para esses julgamentos públicos. Aqueles gritos buscam atingir todas nós porque são contrários a dignidade sexual das mulheres, ampliam as violências de gênero e racial, além de reforçarem violações aos direitos em um ciclo de revitimização e injustiças sobre a vida de meninas e mulheres. 

Por isso, a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto questiona publicamente:

De quanto mais sofrimento e morte é necessário para que o aborto deixe de ser considerado um crime? Quem são as meninas e mulheres que enfrentam consequências da criminalização e morte no Brasil?

Desde muito cedo as meninas estão expostas a uma série de violências que vão acompanhá-las pela vida afora: vítimas das pessoas mais próximas, em quem confiam,  revitimizadas pelo julgamento da sociedade e pela violência do Estado que lhes nega acesso e as (re)revitimizam nas diferentes fases do procedimento a que são submetidas para “provar” que foram vítimas de crimes de estupros. Este processo em si é discriminatório e faz com que mulheres vivenciem, repetidamente, a violação dos seus direitos e não possam ter justiça e bem viver. 

Segundo dados do Fórum de Segurança Pública, em 2019 foram notificados mais de 600 mil estupros no Brasil, sendo mais de 35 mil em meninas de até 13 anos de idades, ou seja, a cada hora ao menos quatro meninas sofrem violência sexual no país. Sem contar a hipótese de subnotificação por medo ou negligência.

As notícias do percurso da menina de 10 anos pela dignidade sexual, direito à saúde física e mental, revela muito da história das mulheres desde sua tenra infância: a naturalização da violência sexual na nossa sociedade. Apesar disso, não é justo acreditar que todas as mulheres brasileiras que conhecem a violência de gênero, encontraram alguma proteção na sua experiência, bem pelo contrário, é no abortamento que se confirmam muitas as desigualdades e iniquidades de raça e classe de norte ao sul do Brasil. 

A história de vida da menina de São Mateus diz mais: escancara a desigualdade entre as próprias mulheres nas quais para as meninas e mulheres negras nem o aborto previsto em lei existe. Esta história confirma as bases do racismo e do sexismo que fundam nossa sociedade sobre as quais a dignidade da pessoa humana é uma ideia suspensa para meninas e mulheres negras, bem como os direitos sexuais e direitos reprodutivos – a linguagem e estatutos que os mesmos implementam não conseguem alcançar esta realidade.

Enquanto as mulheres ricas abortam em clínicas seguras, e vivem! Mulheres negras e pobres recorrem a procedimentos na clandestinidade e, são essas as mulheres que morrem ou carregam sequelas tremendas para o resto da vida. Nos casos das meninas existe o dobro do risco de morte materna e probabilidades mais altas de sofrer outras complicações relacionadas, que vão desde a pré-eclâmpsia até o parto prematuro. Existem também os impactos econômicos, sociais, entre eles o direito à educação, culturais e em demais aspectos da vida acirrando os ciclos de exclusão de direitos, iniquidades, ampliando desigualdades e violências de gênero e raça.

Também são as fundações racistas e sexistas da sociedade e do Estado que possibilitam que as violências desdobradas pelo não acesso ao direito ao aborto andem de mãos dadas com as políticas eugênicas de esterilização forçada de mulheres a fim de controlar suas existências. Neste cenário, as política públicas para o enfrentamento às violências contra as mulheres, em especial a violência sexual, não caminham para proteger e acolher mulheres, mas para reforçar e justificar o modelo punitivista estatal baseado em encarceramento e mais violência e no reforço dos estereótipos racistas sobre as masculinidades negras e homens negros. Infelizmente, a agenda do enfrentamento da violência sexual reverbera mais na propagação do controle do que na promoção da dignidade sexual de meninas e mulheres pretas, pardas, indígenas, do campo, das periferias urbanas.

Não podemos falar em democracia, autonomia, liberdade e justiça, enquanto meninas e mulheres continuarem a ter sua dignidade e autonomia sexual e/ou reprodutiva suspensas por proibitivos legais sustentados em poder, controle, racismo e sexismo determinado por poucos para muitas e muitos. No contexto de injustiças, a criminalização do aborto, além de pouco efetiva quanto à proteção do não nascido, acaba por impedir que a interrupção da gravidez seja tratada como questão de foro íntimo, de decisão pessoal das mulheres ou mesmo de saúde pública, especialmente em se tratando da gestação precoce.

Como acabamos de assistir estarrecidas nesses dias, a criminalização do aborto confere forte estigma à vítima e não isenta de intensa perseguição as/os profissionais de saúde que o realizam, o que acarreta situações de injustiça, mesmo quando a interrupção da gravidez ocorre em hipótese permitida pela atual legislação penal.

A criminalização do aborto não é capaz de afastar a sua realização. A criminalização apenas empurra mulheres para práticas clandestinas, que colocam em risco sua saúde física e mental, principalmente as que dependem do SUS.

Sabemos também que os países onde são menores as taxas de aborto são aqueles onde não existem restrições legais para a sua realização,[1] justamente por serem onde os investimentos em informação sobre sexualidade e reprodução conjugam-se com o acesso facilitado a contraceptivos eficazes. O que não é o caso do Brasil.

Os mesmos fundamentalistas extremistas que condenam uma menina de 10 anos pelo aborto, usam a própria fé para buscar interferir sobre Políticas Públicas, de tal forma que acabam por prejudicar a prevenção da violência e logo a prevenção da gravidez não desejada. Em seus ataques aos direitos reprodutivos, a educação sexual em escolas precisa ser proscrita, denunciam a distribuição de métodos contraceptivos e preservativos em Unidades Básicas de Saúde, combatem políticas públicas direcionadas aos direitos sexuais e reprodutivos, fazem apologia à revogação de Normas Técnicas que normatizam e humanizam a atenção às mulheres que chegam aos serviços.

Desde que o aborto foi criminalizado no Brasil, pelo Código Penal de 1940, permaneceram dois permissivos: casos de estupros e risco de vida das mulheres. A isso, em 2012, somou-se o permissivo para interrupção da gravidez em casos de fetos anencéfalos. Estes mesmos fundamentalistas buscam fervorosamente apresentar propostas legislativas para retirar poucos direitos que existem, como a alteração de 80 anos de normativa sobre aborto legal. 

   Diante do acima exposto, a FRENTE NACIONAL CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DAS MULHERES E PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO

 entende que:

–  A democracia só é viável  pelo debate livre de julgamentos, não sobrevive aos controles, opressões, mitos e preconceitos tal qual acontece com os os debates e garantia do direito ao aborto, uma prática milenar entre mulheres de todas as classes sociais, e que é o último recurso diante de uma gravidez não planejada, indesejada ou violenta. O ocultamento do debate privilegia e amplia as iniquidades e desigualdades entre as próprias mulheres que têm em comum o assédio e o abuso sexual, suspendo sua dignidade

– A maternidade deve ser respeitada como uma decisão complementar a outros projetos de realizações pessoais e não apenas um caminho estabelecido diante da ausência de escolhas e de pouca informação e orientações;

– O Estado tem o dever de, ao invés de controle, promover direitos, justiça, em um cenário democrático e que colabore com o desenvolvimento da autodeterminação individual e coletiva e para o acesso às informações, aos métodos contraceptivos e à saúde sexual e reprodutiva, sob a perspectiva dos direitos humanos. A reprodução e maternidades não podem ser meros espaços de controle da sociedade ou do Estado, que insistem em decidir quem acessa direitos, informações e justiça – que decide quem vive e como vive num monopólio racista e sexista

– A diminuição da desigualdade entre todas nós depende de possibilidades de escolhas e de construção de projetos para nossas vidas, que o Estado tem o dever de promover e não de colocar em mais risco ou se apresentar como apoiador do antidireitos de meninas e mulheres, contrário ao direito à vida sem violência e a não discriminação racial e de gênero.

– A descriminalização e a legalização do aborto é o caminho para amenizar o preconceito, a dor, a discriminação e execração pública de mulheres que optam por ele em determinado momento de suas vidas e promover a pela autonomia das mulheres. E, do ponto de vista coletivo, é um caminho para a promoção da saúde pública de qualidade, com serviços de saúde sexual e reprodutiva gratuitos, acessíveis e seguros, e políticas de proteção de meninas e mulheres para além de argumentos morais.

Queremos um Estado brasileiro verdadeiramente laico, antirracista e sem sexismo. Estamos alertas ao uso da violência contra meninas e mulheres para alimentar interesses políticos e perpetuar privilégios.

 Pela Vida das mulheres. Legalizar o aborto no Brasil!

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