23/06/2023
ARTIGO – Saúde da População Negra no Brasil: mobilização em defesa do SUS e contra o racismo
Por Celso Ricardo Monteiro, da Sociedade Ketú Asé Igbin de Ouro
A garantia do direito à saúde no Brasil, no que se refere à saúde da população negra, é parte de um processo que há mais de trinta anos vem mobilizando as instituições brasileiras a partir das condições de vida e necessidades em saúde apontadas pelo movimento negro, particularmente pelo movimento de mulheres negras, que denunciaram o descaso do Estado brasileiro em meio à Marcha Zumbi dos Palmares (Novembro de 2005).
Se naquele momento o Presidente da República recebeu as lideranças da marcha e assinou o decreto em que instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, questões centrais, como o funcionamento da máquina e a forma como o racismo opera no cotidiano institucional vão desafiar os movimentos sociais, a comunidade acadêmica, os organismos internacionais e as organizações de governo ao debate mais intenso sobre o sagrado direito à saúde, e a forma desigual com que são tratados negros e não negros em meio às necessárias ações para promoção da equidade no árduo terreno do Sistema Único de Saúde no Brasil (SUS).
No cenário atual, marcado por desmontes de importantes políticas públicas, a pandemia de COVID-19 vai acentuar as demandas apresentadas cotidiana e rotineiramente pelo impacto que o racismo gera na saúde da população negra. Logo, a sociedade civil vem buscando redesenhar os trajetos que proporcionaram a implementação de políticas públicas para enfrentamento do racismo – que hoje se sabe como estrutural – em diferentes áreas de atuação, mas com destaque para o funcionamento do SUS, o que implica a gestão da política e sua recondução em meio a negação de direitos básicos e fundamentais que marcou os últimos anos do país.
A implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra se tornou objeto central das ações desenvolvidas pelo movimento negro, a partir das articulações entre Criola e Aliança Pró-Saúde da População Negra, a partir de 2020, o que gerou a mobilização de diferentes atores rumo a retomada da PNSIPN. O texto que segue, busca portanto, descrever o processo que possibilitou a retomada do diálogo entre o movimento negro e o Estado brasileiro, com vistas a implementação da PNSIPN a partir da rede criada no âmbito das articulações entre Aliança Pró-Saúde da População Negra e Criola.
Diferentes organizações, redes, intelectuais, pesquisadores, gestores e profissionais de saúde retomaram o diálogo em função da implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, o que gerou uma densa atuação dessa rede.
Estrategicamente, tal diálogo se iniciou com a reaproximação de diferentes forças políticas dedicadas ao tema saúde da população negra, a partir de uma ampla diversidade de posições e lugares importantes no Brasil, em um momento altamente simbólico, do ponto de vista da condução do país. Reunir tais organizações e pessoas implicava na rearticulação do processo político necessário para mobilizar o Estado brasileiro, considerando que, territorialmente, as respostas a diferentes problemas sociais relacionados à garantia de direitos básicos e fundamentais, sobretudo na periferia, tenham sido conduzidas pelas lideranças de movimentos sociais frente a ausência do Estado – vide o combate à fome em meio à pandemia.
O Manifesto em Atenção à Saúde da População Negra surge em abril de 2022, como primeiro produto dessas articulações políticas – composto por uma Carta Aberta à Sociedade e uma Carta direcionada aos candidatos e candidatas ao processo eleitoral de 2022. A organização do documento vai então mobilizar diferentes atores políticos (intelectuais, especialistas, gestores e profissionais de saúde, sacerdotes/sacerdotisas de religiões afro-brasileiras e lideranças de diferentes movimentos sociais) visando a ampliação do debate sobre a ausência do Estado no que tange a implementação da PNSIPN, a partir de um diagnóstico situacional e diferentes análises políticas que subsidiaram a ação de diferentes atores para a mobilização esperada.
Uma vez divulgado por inúmeras organizações e pessoas por meio de diferentes veículos, o manifesto reuniu assinaturas da sociedade, por meio de formulário eletrônico¹ e, com tal mobilização, essa rede passou a se reunir sistematicamente para o diálogo sobre o futuro político esperado para o país e a definição das estratégias políticas a serem adotadas em um curto e médio prazo. Afinal, havia então um objeto concreto a ser alcançado: a mobilização da sociedade para participação popular e controle social das políticas públicas de saúde no cenário em que as eleições de 2022 já eram objeto de debate no país.
O passo seguinte foi a realização da “Ocupação do 13 de maio – em atenção à saúde da população negra”, que repercutiu de forma positiva no movimento negro. Aproximadamente 20 organizações da sociedade civil informaram que realizariam atividades diversas por meio de um formulário criado no Google Drive, e essas foram foram publicadas via redes sociais, estimulando a divulgação das mesmas.
A publicação do texto “Ocupar o 13 de maio, para abolir as desigualdades raciais na saúde” no Jornal Folha de SP em apoio à Ocupação do 13 de Maio foi uma contribuição importante para ampliação do debate, pois oferecia conteúdos a serem discutidos em meio às atividades. Esperávamos oferecer maior visibilidade ao tema em data tão importante, logo, a soma entre a ocupação e o artigo alcançou o objetivo esperado.
O mesmo se deu com a publicação do texto “Precisamos falar sobre a saúde da população negra nas eleições 2022” no Jornal Nexo, assinado por Hilton Paiva – UNB – e o Babalorixá Celso Ricardo de Oxaguian, que contou com grande repercussão na internet, uma vez que pautou o cenário político. A esse processo se somou a publicação de nove vídeos em apoio a essa articulação, além da publicação de uma série de posts e stories nas redes sociais da Aliança Pró-Saúde da População Negra.
As organizações que compõem a coordenação do Manifesto reuniram-se em junho para organizar as ações destinadas à mobilização nacional, que se pretendia constante. A partir de tais atividades, foram indicados os temas centrais para avaliação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que mais tarde foram discutidos por diferentes especialistas no conjunto dos Encontros da Rede Pró-Saúde da População Negra conduzidos a partir da parceria entre Criola e Aliança Pró-Saúde da População Negra. Esse foi um importante ponto de encontro ao longo do ano entre as principais lideranças da área, e tornou-se a oportunidade de rearticulação do movimento social em busca de políticas pró-equidade.
Foi criado um formulário no Google Drive para apresentação das ações que aconteceriam em atenção à Mobilização Nacional no mês de julho, em função do Dia da Mulher Negra da América Latina e do Caribe. Assim, foi possível ampliar o diálogo sobre o panorama do SUS e as questões relacionadas à saúde pública naquela conjuntura, considerando as intersecções e os diferentes aspectos do direito à saúde para fortalecer o Sistema Único de Saúde, e potencializar o processo de implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
Esperava-se por incluir o tema saúde da população negra em atividades diversas, que aconteceriam em atenção à data, e tal iniciativa resultou na realização de 20 atividades no país, entre julho e agosto, cuja divulgação ocorreu por meio de publicação no site da Aliança, e ampla divulgação de conteúdos diversos via Whatsapp.
A mobilização das lideranças gerou a entrega formal do Manifesto em Atenção à Saúde da População Negra no Brasil, aos candidatos e candidatas às eleições de 2022. Em São Paulo, por exemplo, a Iyalorixá Karem Olaosun entregou o documento ao Gabinete da então Vereadora Erika Hilton, ao participar de uma reunião com lideranças de religiões afro-brasileiras. Dona Arlete de Lourdes Isidoro, da OGBAN, articulou a participação da Aliança no evento em que a Coalização Negra por Direitos apresentou os candidatos negros ao Parlamento/2022 e, José Adão, do MNU, esteve com o Prof. Fernando Haddad no ato de lançamento de sua campanha ao governo do Estado de São Paulo.
Movimento igual ocorreu no Rio de Janeiro, gerando a entrega do documento à Benedita da Silva, Marcelo Freixo e outros atores políticos. O documento foi entregue às autoridades em diferentes oportunidades, proporcionando uma intensa atuação política junto a lideranças políticas de diferentes matizes e em diferentes estados e municípios.
Ao longo do segundo semestre a série de encontros ampliados da Rede Pró-Saúde População Negra possibilitou o diálogo entre especialistas de áreas diversas, semanalmente e de forma remota, envolvendo lideranças de todo o território nacional. Conforme solicitação da Associação Cultural Educacional Assistencial Afro- Brasileira OGBAN, a discussão em profundidade sobre o conteúdo do Manifesto em Atenção à Saúde da População Negra no Brasil, avaliando a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, marcou um dos encontros ampliados dessa rede. Os encontros, que eram temáticos, foram fundamentais para as articulações entre as lideranças, mas também para atualização, reorganização conceitual, alinhamento e organização comunitária.
O historiador Andrey Lemos contribuiu com o debate passeando pelo processo histórico e indicando os caminhos possíveis para o enfrentamento do racismo e seu impacto na saúde pública, em meio à avaliação da política macro, a não implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e os desafios presentes no processo eleitoral de 2022.
Tal debate foi acentuado pela discussão sobre a interface entre “Atenção Básica e Racismo”, considerada como uma questão primordial no campo do acesso à saúde, conforme sinalizado por Dr. Maicon Nunes e Dra. Joice Aragão no encontro seguinte, que reuniu diferentes lideranças com atuação na área em todo país.
O mesmo ocorreu no encontro sobre “Atenção Primária na Favela dos Sonhos” com Rita Helena Borret, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade; no encontro sobre “Questões climáticas e o impacto do racismo na saúde da população negra” com a Profa. Angela Brito, do movimento negro de Alagoas; no encontro com o Babalorixá Celso Ricardo de Oxaguian sobre “Os desafios do SUS e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no Brasil atual”; e no encontro sobre “Racismo e saúde da população negra nas eleições de 2022” com o Prof. Hilton Silva/UnB.
A mobilização inclui a realização da “Mesa Redonda: Saúde da População Negra” no XXXVI Congresso Nacional de Secretarias Municipais de Saúde/CONASEMS, em julho, sob coordenação do Prof. Dr. Luís Eduardo Batista/GT Racismo e Saúde – ABRASCO e com apoio da FIOCRUZ.
Tal movimentação alimentou o debate necessário à organização de diferentes ações alusivas ao Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde da População Negra no país, ao longo do mês de Outubro. Diferentes atividades foram apresentadas pelas organizações e redes do movimento negro via formulário no Google Drive, e posteriormente divulgadas.
Em outubro, na véspera do segundo turno das eleições, ocorreu a Ocupação da Internet em atenção à saúde da população negra para discutir o tema “Democracia e Saúde”, reunindo diferentes redes e organizações negras que apresentaram suas agendas políticas diante da não implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, e denunciaram a ausência do racismo no debate eleitoral. A atividade, que durou em média de 04 horas, foi organizada a partir da participação das lideranças, seguindo o modelo de Criola On (atividade conduzida por Criola, no Rio de Janeiro, em 2020).
A construção da programação, eleição de temas, organização da programação e condução da sala no Youtube ocorreram novamente com o envolvimento de diferentes atores desde o primeiro momento, quando diferentes organizações e redes negras com atuação contra o racismo no país, se articularam para organizar a Ocupação.
Em novembro, o Encontro de Saúde da População Negra, que contou com a condução de Raquel Souzas e Jaqueline Soares (em meio às atividades prévias do 13o. Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva/ABRASCO, na cidade de Salvador), reuniu esforços de diferentes organizações e redes do movimento negro brasileiro. As inscrições ocorreram de forma online e, ali, foi possível fazer importantes conexões entre os debates que ocorreriam ao longo do Congresso.
Esse era um movimento que buscava ampliar as possibilidades de articulação e visibilidade ao tema, reunindo pesquisadores, intelectuais, gestores, profissionais de saúde e de outras áreas do conhecimento, além de lideranças de diferentes movimentos sociais e de religiões afro-brasileiras. Esperava-se pela ampliação do debate e a rearticulação das forças políticas, para assim incidir sobre os planos do governo petista, então eleito em segundo turno das eleições. Essa mobilização gerou, por exemplo, o documento que foi entregue ao poder público, apresentando a agenda do movimento negro brasileiro ao governo, que foi construído em parceria com o GT Racismo e Saúde da ABRASCO.
Em meio ao Congresso, a Aliança Pró-Saúde da População Negra conduziu uma série de transmissões ao vivo, via Youtube, para estabelecimento de “Conexões em atenção à Saúde da População Negra” tendo, como expectativa, o diálogo sobre o cenário político com as pessoas que não puderam participar do evento. Os congressistas eram convidados a apresentar suas avaliações e perspectivas sobre o evento ao término de cada um dos dias da atividade transmitida ao vivo.
Dessa empreitada participaram Rosemary dos Santos, da Secretaria Municipal da Saúde de Recife; Conceição Silva, da UNEGRO; Egbon mi Altamira Simões, da Rede Lai-Lai Apejo – Saúde da População Negra e AIDS; Andrey Lemos, da União Nacional LGBT; Ekedi Marta Almeida, do Movimento Negro Unificado – MNU/Pernambuco; Valcler Fernandes, Roberta Gondim e Valber Frutuoso, da Fundação Oswaldo Cruz – Rio de Janeiro, e Michely Ribeiro, da Rede Lai-Lai Apejo.
Ainda no mês de novembro, pesquisadores, intelectuais, profissionais de saúde, lideranças de religiões afro-brasileiras e de diferentes organizações do movimento negro foram recebidas pelo GT de Saúde, do Governo de Transição, em reunião conjunta com o GT de Igualdade Racial. A atividade realizada de forma híbrida discutiu a implementação da Política de Saúde da População Negra a partir de diferentes diagnósticos políticos, subsidiando a atuação do governo eleito. Se no momento anterior a mobilização gerou um documento mais aprofundado para o diálogo com o governo federal, aqui foi possível focar nas expectativas da sociedade sobre os cem primeiros dias do governo.
A publicação do texto de Akemi Nitahara intitulado “Sociedade civil cobra cumprimento da lei de saúde da população negra” (Agência Brasil, novembro de 2022)5, e do texto “As demandas do movimento negro para o gabinete de transição de Lula: Organizações pedem ‘revogaço’ de medidas que julgam ampliar as desigualdades sociais, raciais e econômicas do país”, publicado por Lucas Vettorazzo, no site da Veja em 25 nov 2022, ampliaram as muitas vozes da mobilização que marcou o ano de 2022, e repercutiram na imprensa nacional ao longo da semana.
Esse processo contou também com a participação da sociedade civil na Audiência Pública sobre Saúde da População Negra, realizada pela Câmara dos Deputados, em 01 de dezembro de 2022, sob condução da Comissão de Seguridade e Família. Essa intensa atuação foi fundamental, por exemplo, para o diálogo entre a sociedade civil e o governo de transição, uma vez que já durante o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva a sociedade civil caminhava em busca de participação política no novo governo.
A publicação do artigo “Saúde da População Negra: o que esperar do próximo governo?” publicado pelo Blog Saúde em Público, da Folha de São Paulo (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), assinado pel Babalorixá Celso Ricardo de Oxaguian e o economista Rony Coelho, comentava as pautas levadas pelo movimento negro ao governo de transição.
Nesse momento, discute-se como atuarão as organizações e redes negras em defesa do SUS em um contexto em que que o movimento negro já foi recebido pela atual Ministra de Estado da Saúde, mas a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra não alcança as pessoas que mais precisam dela.
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Em dezembro de 2022 o Manifesto reuniu assinaturas de aproximadamente 1200 pessoas e instituições em todo o país.