13/10/2017

Acadêmicos repudiam ação do STF que pode tirar terras de quilombolas

Comunidade acadêmica se une para manifestar repúdio ao pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239, que será julgada pelo STF no dia 18 de outubro. A ação questiona o Decreto nº 4887/2003 que trata da titulação de terras quilombolas no Brasil. Se aprovada, pode inviabilizar a regularização dessas áreas e consequentemente o reconhecimento do direito territorial das comunidades remanescentes de quilombos.

Nota da comunidade acadêmica em favor da titulação de terras quilombolas e em repúdio ao pedido da ADI 3239 

Nós, abaixo assinados, vimos a público manifestar nosso repúdio ao pedido da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239, que será julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 18 de outubro de 2017. Trata-se de uma ameaça grave não apenas às conquistas da população quilombola desde a consagração da Constituição Federal de 1988, mas sobretudo à vida dessa mesma população — seja pela crescente violência à qual tem sido submetida, seja pela intervenção sobre a sua relação com a terra que chamam “território”: condição fundamental de sua existência enquanto coletividades distintas. Não podemos observar inertes a paulatina subordinação de direitos fundamentais e de políticas públicas para minorias étnicoraciais a interesses econômicos escusos. Seja sob a forma de pressão local sobre os territórios desses grupos e sobre os corpos de suas lideranças, seja sob a forma de ações legais e proposições legislativas — ou mesmo pela inviabilização, via esvaziamento orçamentário, da titulação de terras —, essas intervenções configuram um processo genocida de fundo racista sobre o qual não podemos calar.

Ao questionar o Decreto nº 4887/2003, que tem como objeto a titulação de terras quilombolas no Brasil, a ADI 3239 pode inviabilizar a regularização dessas áreas e consequentemente o reconhecimento do direito territorial das comunidades remanescentes de quilombos, uma vez que esvazia a normativa referente a esses processos e que questiona os seus próprios fundamentos — como a autodeclaração das comunidades, um direito fundamental e um critério jurídico que segue as determinações da Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. São inaceitáveis as dimensões de retrocesso anunciadas pelos argumentos da ADI nº 3239, que vai no sentido contrário da própria conquista da Constituição Federal de 1988 em relação ao reconhecimento dos quilombos como uma forma atual de existência, cuja ocupação territorial deve ser reconhecida pelo Estado. Frisamos que não apenas a ADI, mas também a sugestão de que se aplique à titulação de quilombolas a tese do marco temporal podem inviabilizar, ademais, o processo de reparação histórica do qual a regularização dessas áreas faz parte, uma vez que são deixados de lado os impactos de quase quatro séculos de escravidão, os processos históricos de expropriação das terras, e demais violações sofridas pelas comunidades. Em outras palavras, trata-se de uma intrusão exógena ao texto constitucional, sem fundamentação jurídica.

Não ficaremos silentes diante da violência crescente à qual a população quilombola está submetida. Só no estado da Bahia, entre julho e agosto deste ano, foram assassinadas 8 pessoas — sendo 6 dessas vítimas da chacina no quilombo Iúna, no município de Lençóis. Somados aos casos de tortura e perseguição relatados pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), esses dados apontam para uma estratégia inequívoca de extermínio de lideranças, cujo foco reside na sua particularidade étnica e racial. Esse cenário tende a se intensificar ainda mais caso a ADI seja julgada procedente, considerando que há uma ligação direta, largamente comentada por especialistas, entre a não titulação de terras (ou mesmo sua morosidade), de um lado, e o aumento da violência contra as comunidades quilombolas, de outro.

No mesmo sentido irão as consequências da redução orçamentária que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tem sofrido nos últimos anos. Em 2016 este órgão – responsável pela regularização de quilombos — registrou um encolhimento orçamentário de 80%, quando comparado aos valores disponíveis no ano anterior. Hoje, o órgão tem apenas R$ 4 milhões para encaminhar os processos de regularização pendentes. Em 2010, eram 64 milhões — ou seja, um decréscimo de 94% em sete anos, conforme indica a Comissão Pró-Índio de São Paulo. Não bastasse a gravidade do cenário, a Casa Civil determinou, em abril de 2017, a paralisação dos processos de titulação até que fosse concluído o julgamento da ADI nº 3239 pelo STF.

Destacamos, por fim, que o decreto 4887/03 não se refere apenas à regularização das terras, mas é base para que os quilombolas acessem outras politicas públicas, no sentido de garantir uma vida digna e assegurar sua plena cidadania — não esqueçamos a natureza da violência cuja herança carregam: a recusa de sua humanidade. A regularização dessas áreas é fundamental não apenas para a existência dos quilombos como para a própria sobrevivência dos membros dessas comunidades, uma vez que as dimensões sociais, econômicas, culturais e históricas de suas vidas são diretamente vinculada à sua relação coletiva com a terra. Não aceitamos qualquer retrocesso em relação ao reconhecimento dos direitos fundiários quilombolas e do vínculo íntimo entre essas coletividades e seus territórios — ao mesmo tempo fundiários e existenciais. O apagamento desse vínculo é um elemento central do processo em curso, para cujos efeitos e desfechos genocidas procuramos chamar a atenção.

Assinam: Instituto Autonomia -INAU
Grupo de Pesquisas em Direitos Étnicos da UnB (Moitará)
Laboratório de Antropologias da T/terra (T/terra)
Laboratório de Estudos e Pesquisas em Movimentos Indígenas, Políticas Indigenistas e Indigenismo (Laepi)
Laboratório e Grupo de Estudos em Relações Interétnicas (Lageri)
Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT)
Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro (Maré)

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