29/09/2020

Balanço dos Direitos Humanos durante a pandemia no Brasil

*Com informações do site da Anistia Internacional.

Uma audiência online encerrou as atividades da campanha Nossas Vidas Importam, na tarde de 25 de setembro. Com a abertura e mediação de Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, participaram ainda 17 representantes de organizações que fazem parte da campanha e 5 autoridades convidadas para debater o tema.

A campanha apresentou, em maio, uma agenda de recomendações da Anistia Internacional e 39 organizações, com medidas urgentes e coordenadas para responder a crise da Covid-19 para populações vulneráveis, entre elas: moradoras e moradores de favelas e periferias, pessoas em privação de liberdade, incluindo jovens do sistema socioeducativo, população negra, pessoas em situação de rua, pessoas com condições de moradia inadequada, mulheres, cis e trans, quilombolas, povos indígenas, populações tradicionais, migrantes e refugiados, trabalhadores e trabalhadoras autônomas, principalmente informais, população LGBTQI, crianças, adolescentes e idosos. Após 6 meses de pandemia no Brasil, o trabalho conjunto das organizações durante a campanha expôs as lacunas do Estado no enfrentamento da crise imposta pela covid-19 como a falta estrutural de políticas públicas que respondam as necessidades reais das populações historicamente vulnerabilizadas.

Confira a comunicação realizada por Lia Maria Manso, coordenadora de Projetos de Criola, durante a audiência:

Historicamente no Brasil as violências, interpessoais ou institucionais, a violação de direitos ou não acesso aos mesmos, bem como a gravidade das iniquidades e discriminações vem atingindo centralmente a vida das mulheres negras e assim produzindo e reproduzindo injustiças diversas, dor, adoecimento, encarceramento e morte que fundam estruturalmente a sociedade e o Estado brasileiro – através do racismo, o sexismo, a lgbtqia+fobia, o capacitismo e o classismo.

Não obstante as expropriações de vida e violência, nossas lutas, vozes, saberes, ações e imaginação política pelo Bem Viver[1] têm sido centrais, não somente para nós, mas para nossas comunidades de existência e para mudar os sentidos de injustiças que fundam a pretensa democracia brasileira. Tal impulsionamento e ação política não poderia ser diferente frente ao cenário de crises política, sanitária, econômica, não criadas, mas aprofundadas pela pandemia do Covid-19 e as equivocadas ações de Gestão municipais, estaduais e federal que não priorizam direitos e a dignidade humana, que não priorizam a produção de vida em perspectiva antirracista e de combate ao racismo patriarcal cisheteronormativo e capitalista, mas escancaram, as ausências, omissões e ações da não realização de direitos humanos e Bem Viver, portanto promoveram e promovem uma política de morte. Neste cenário, A pandemia da Covid-19 é mais uma prova evidente da falência do modo de vida atual baseado em opressão e exploração de vidas negras e na redução dos espaços de participação democrática e na diminuição do controle social sobre políticas públicas, gestão e serviços.

É portanto e impulsionadas pela força de ação e de denúncia de mulheres negras e lado a lado com estas que nós da associação civil feminista e antirracista, Criola, organização de mulheres negras, destacamos e levantamos nossas vozes frente às questões a seguir relatadas:

  • Durante a pandemia da Covid-19 a população negra e mulheres negras foram centralmente afetadas. Destacamos inicialmente um breve quadro de extrato de violações e iniquidades que levantamos em ação política denominada “Agora é a Hora”, com lideranças políticas e com organizações parceiras (Instituto Marielle Franco; Movimenta Caxias;  Periffa Conection), que alcançou 17 municípios, 573 territórios do estado do Rio de Janeiro, em escuta a mais de 6000 pessoas entre abril e agosto de 2020, em 88,7% pessoas negras e 83,5% mulheres (cis e trans). Foi relatado quadro alarmante: 81% das pessoas entrevistadas relataram morar em casas onde nenhuma das residentes possui carteira assinada; 80% das pessoas cadastradas nos indicaram viver com pelo menos 1 pessoa desempregada; entre as pessoas que afirmaram ter tido a renda totalmente impactada após o início da pandemia, 85,3% são negras; 54.3% das pessoas atendidas não possuíam CadÚnico. Além disto foram significativos os relatos de inseguridade alimentar e violências domésticas e familiares, principalmente entre mulheres negras[2].
  • Este quadro é coincidente com o preocupante situação de iniquidades raciais no campo de trabalho e emprego para a população negra que ampliou a inseguridade e risco social para as nossas existências:
  • segundo dados do Instituto Identidades do Brasil, entre as mulheres negras empreendedoras, 79,4% declararam não dispor de reservas financeiras no início da pandemia[3].
  • em relatório de pesquisa “Sem Parar – o trabalho e a vida das mulheres na pandemia” a SOF relatou que o grupo de mulheres negras foi o mais mobilizado para exercer o cuidado durante a pandemia – sendo que 52% das mulheres negras passaram a se responsabilizar pelo cuidado de alguém e entre as mulheres negras 55% declararam que a sustentação de suas casas ficou em maior risco no período, neste estudo também 58% das mulheres que ficaram desempregadas durante a pandemia são negras e a maioria que declarou aumento de violências domésticas também são negras. Destacamos que parte destas mulheres negras ainda mais demandadas pelo cuidado exercem o trabalho doméstico profissionalmente e tiveram sua seguridade trabalhista gravemente afetada[4].
  • Segundo dados do IPEA, nos cinco primeiros meses do ano, à exceção de fevereiro, a inflação da faixa de renda mais baixa manteve-se acima das registradas no segmento mais rico, refletindo que os preços dos alimentos vem impactando mais fortemente o custo de vida das pessoas mais pobres, majoritariamente negras. No acumulado do ano, enquanto as famílias de renda mais baixa, registram uma taxa de inflação positiva de 0,45%, a faixa de renda mais alta aponta uma deflação de 0,45%[5].
  • A situação de violências vivenciadas por mulheres negras durante a pandemia também se apresenta em suas vertentes interpessoais e institucionais. Esta última se estendendo desde aumento de mortalidade materna (em razão do racismo institucional e do déficit significativo de profissionais com o remanejado para atender doentes com a COVID-19 ao invés de ampliação das contratações) e vedação do direito ao aborto legal em caso de violência sexual com a portaria 2282/2020 do Ministério da Saúde[6], até a manutenção do encarceramento provisório e ilegal mesmo diante da crescente de infecções por Covid-19 no sistema prisional[7].
  • Segundo o Dossiê Mulher 2020 que registra os dados do Rio de Janeiro, entre os 85 feminicídios registrados, quase 70% foram cometidos contra mulheres negras, e a maioria delas foi morta por seus companheiros ou ex-companheiros quadro este que demonstra indicativos de piora durante as medidas de quarentena sob a Covid-19 e segundo a constante de aumento apontada pelo Monitor da Violência e do Atlas da Violência 2020[8].
  • Segundo Mapa do Aborto Legal divulgado pelo Artigo 19, somente 55% dos hospitais que oferecem serviço de aborto legal no Brasil atendem durante a pandemia[9].
  • Em nota, a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) afirmou um incremento de 7% nas já altas taxas de mortalidade materna no Brasil. Uma reportagem publicada no final de julho informa que o mesmo grupo responsável pelo estudo (Grupo Brasileiro de Estudos sobre COVID-19 e Gravidez), teria chegado a uma estimativa de 200 mortes maternas por COVID-19 no Brasil[10].
  • Segundo o Boletim 1 de agosto/2020 “O Futuro do Cuidado” do grupo Nem Presas, Nem Mortas, a partir dos dados públicos do Sistema de Informação Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe) e do estudo de enfermeiras e obstetras ligadas a diversas universidades brasileiras (Universidade Estadual de São Paulo/UNESP, Universidade Federal de São Carlos/UFSCAR, Instituto Materno Infantil de Pernambuco/ IMIP e Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC) – das 160 mortes maternas por Covid-19 conhecidas e notificadas em todo o mundo entre 26/02 e 18/06 de 2020, 124 ocorreram no Brasil. Entre estas, apenas 64% foram entubadas e ventiladas e 36% não receberam a assistência adequada. A maioria (71%) era de não brancas e se encontrava nas regiões Norte e Nordeste[11].
  • A inseguridade e risco social se acentuam ainda mais no cenário quando observamos que os índices de saúde e adoecimento por COVID-19 e outras causas também recai de maneira mais grave sobre mulheres negras e/ou suas famílias:
  • A Covid-19 avança no Brasil e registrou de acordo com estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC do Rio de Janeiro, pessoas negras morrem mais do que brancos na pandemia no Brasil: desigualdades no acesso ao tratamento confirmam que as chances de morte de um paciente preto ou pardo analfabeto (76%) são 3,8 vezes maiores que um paciente branco com nível superior (19,6%)[12].
  • A plataforma IntegraSUS – Ceará demonstrou que no estado o maior número de casos confirmados se dá entre pessoas negras que somam mais de 65% de infectadas[13].
  • No estado e municípios do Rio de Janeiro os planos de contingência frente a Covid-19 não contemplam medidas necessárias de redução das desigualdades e do risco social com atenção a raça e gênero das cuidadoras exclusivas de crianças e adolescentes, apenas impondo retomada econômica sem desenvolver políticas próprias e em desacordo com a Norma Operacional Básica do SUAS para atenção à população vulnerabilizada – tal situação demandou pedido liminar da Defensoria Pública e Ministério Público do estado e Ministério Público do Trabalho, deferido pela 1ª Vara da Infância, da Juventude e da Pessoa Idosa em 12 de agosto de 2020, mas ainda não atendido pelas gestões municipais e nem pela gestão estadual[14].

Nós mulheres negras, cobramos firmes, assertivos, definitivos posicionamentos e ações institucionais pela garantia de direitos humanos econômicos, sociais, culturais, ambientais, sexuais e reprodutivos frente às injustiças relatadas acima, especialmente no que diz respeito à assistência e suporte social para diminuição de risco social, pela defesa do Sistema Único de Saúde, pelo estabelecimento dos serviços de saúde sexual e reprodutiva como essenciais, pela revogação total da portaria 2282/2020 do Ministério da Saúde e restabelecimento da Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento Legal, pela defesa do Sistema Único de Assistência Social, pela Renda Básica permanente que garanta condições de vida dignas, fortaleça a economia e reduza as desigualdades e pela revogação do teto de investimentos sociais imposto pela Emenda Constitucional 95 – não haverá democracia, enquanto houver racismo e enquanto não forem ouvidas as reivindicações de nós mulheres negras – A VIDA DE MULHERES NEGRAS E SUAS COMUNIDADES DE EXISTÊNCIA IMPORTAM, NOSSAS VIDAS IMPORTAM!


[1] https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2016/09/E-book-Marcha-das-Mulheres

-Negras-comprimido-20.09.16.pdf.

[2] https://www.agoraeahora.org/resultados

[3]primeira fase do relatório https://drive.google.com/file/d/1sT3fXjAZSdoZq-ZY7mI_FB19MAg5udTG/view?usp=sharing segunda fase do relatório https://drive.google.com/file/d/1TJFAUHv7-PCs2oD5C4EqTXl4S61uk2IQ/view

[4] http://mulheresnapandemia.sof.org.br/ e http://mulheresnapandemia.sof.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Relatorio_Pesquisa_SemParar.pdf

[5] https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/tag/inflacao-por-classe-social/

[6] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.282-de-27-de-agosto-de-2020-274644814

[7] http://ittc.org.br/o-sistema-prisional-e-o-coronavirus-segundo-dados-do-depen/

[8] http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/monitor/index.html

[9] https://artigo19.org/blog/2019/03/28/plataforma-reune-informacoes-sobre-servicos-que-realizam-aborto-legal-no-brasil/ e https://mapaabortolegal.org/

[10] https://futurodocuidado.org.br/wp-content/uploads/2020/08/boletim_futuro_do_cuidado_n1.pdf

[11] idem

[12] http://www.ctc.puc-rio.br/diferencas-sociais-confirmam-que-pretos-e-pardos-morrem-mais-de-covid-19-do-que-brancos-segundo-nt11-do-nois/

[13] estudo geral https://indicadores.integrasus.saude.ce.gov.br/indicadores/indicadores-coronavirus/indice-transparencia dicionário de dados https://github.com/integrasus/api-covid-ce

[14] notícia sobre a liminar https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/08/justica-determina-que-governo-do-rj-apresente-plano-para-atender-criancas-sem-aulas-cujos-pais-voltaram-ao-trabalho.shtml?pwgt=ldotoo01avo9zs220zkmyqj4jw955g9zpsq6z2rzv1d4abr6&utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwagift

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