31/10/2022

Artigo: 30 de agosto – Desaparecimentos forçados, democracia inconclusa e mulheres negras na luta por justiça e reparação 

Por Danielle Moraes, Assistente de Coordenação e Incidência Política de Criola

Falar de racismo no Brasil é percorrer um território de cicatrizes abertas, sonhos inacabados e gritos silenciados. A sociedade brasileira, que se estrutura no modelo escravista a partir do racismo e das disparidades raciais, segue produzindo e reproduzindo violências até a atualidade. Os anos de colônia escravista, a independência e república, e os intensos processos ditatoriais – todos processos históricos profundamente racializados, tonaram o Brasil um país de democracia inconclusa, também chamado por Flauzina (2019), de democracia genocida. Do desmonte às políticas públicas de acesso a bens e direitos que constitui cidadania; passando pelas dimensões culturais e interpessoais; e também a Segurança Pública como instrumento de aniquilação, o genocídio da população negra segue em pleno curso no Brasil, apesar de vivermos, segundo os documentos oficiais, em um sistema democrático.  

Sendo uma democracia inconclusa, a operacionalização da necropolítica (MBEMBE, 2020) se exprime em dados alarmantes, porém, insuficientes para traduzir as lágrimas, dores e resistências dos familiares que são obrigados a lidar com as ausências e a luta por justiça.  

Se observados os dados acerca dos assassinatos praticados por agentes da Segurança Pública, segundo dados do Observatório Nacional de Direitos Humanos, no ano de 2023, 17 pessoas foram mortas por dia pela polícia e 8 em cada 10 vítimas eram negras. Os dados, apesar de desanimadores, existem, o que nos possibilita entender a realidade. No entanto, quando se trata de pessoa desaparecida por agente de segurança os grupos paramilitares com relações estreitas com o Estado, os números são, ainda, inexistentes, dada a ausência de tipificação penal para este tipo de violência. O emblemático caso Mães de Acari – reconhecido internacionalmente como o primeiro caso de desaparecimento forçado em contexto democrático – e diversos outros que estamparam jornais e doze anos passados, não foram suficientes para que a vontade política agilizasse a tramitação do Projeto de Lei 6240/2013, ou mesmo a construção de normativas mais robustas que tratassem sobre o tema, deixando apenas as esferas internacionais como normativas sobre desaparecimentos forçados. Segundo a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado das Nações Unidas, artigo 2°, o desaparecimento forçado é um crime contra a humanidade, definido como “a prisão, a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei” (2006). 

A naturalização na morte e a desumanização de vidas negras, principalmente quando cometida por agentes do Estado, se tornou comum no cotidiano da mídia. Vemos todos os dias reportagens sobre ações policiais que se encerram com o desaparecimento e a morte de cidadãos e cidadãs. Na maioria dos casos, como apontam os dados já mencionados, as vítimas eram pessoas negras. Ainda, segundo pesquisas realizadas com esforço coletivo a partir da ausência de dados concretos pelo Fórum Grita Baixada (FGB) e a Iniciativa direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), a baixada fluminense é o epicentro de desaparecimentos forçados e cemitérios clandestinos, fruto de guerras entre grupos paramilitares e grupos civis armados, especulação imobiliária e violência política, onde “o município de Nova Iguaçu registra o maior número de locais de descartes de corpos e somados com Duque de Caxias e Belford Roxo possuem 55% dos cemitérios clandestinos e áreas de desovas da região” (IDMJR, 2025).    

Morrer e desaparecer, resguardadas as diferenças materiais, políticas e jurídicas, têm o mesmo resultado concreto: a extinção da presença e o rompimento dos vínculos. Se na morte a saudade toma lugar a partir da confirmação da extinção da vida e a possibilidade material da despedida; no desaparecimento, a espera pelo retorno é a dor da esperança que não se concretiza e de uma justiça que nunca chega. A ausência de tipificação, de um corpo e a agência do estado no crime impõe limites à possibilidade de justiça, justificada juridicamente a partir da falta de provas e lenta tramitação dos casos, que também pode ser entendida como a morosidade do sistema judiciário brasileiro e a baixíssima taxa de resolução de crimes, onde, “a nebulosidade que cerca o desaparecimento, em si mesmo, atinge tudo aquilo que o tange. As ausências se tornam as únicas presenças que se passa a ter certeza: ausência de pessoas, de corpos, de processos de investigação, de interesse pela solução, de políticas públicas e de fortalecimento da participação dos mais atingidos” (ARAÚJO, 2023).  

Os desaparecimentos forçados no Brasil exprimem uma das faces do racismo patriarcal cisheteronormativo, que relega, principalmente às mulheres negras familiares de vítimas, o lugar da subalternidade obrigatória na luta por justiça, uma vez que o Estado oferta poucas respostas em relação aos casos, transformando essas mulheres também em alvos ao se tornarem defensoras de Direitos Humanos. Adoecimento físico e mental, distúrbios do sono, depressão, ansiedade e medo constante tornam-se, a partir da violência sofrida, um novo modo de sobrevivência dessas mulheres que buscam, mais do que as possibilidades de sepultamento, respostas para a ausência. A data de 30 de agosto nos orienta a não esquecer. Não esquecer que onde antes existiam familiares, agora permanece a ausência e a saudade, e que essa ausência não se dá por vontade própria: está inscrita em um projeto que subalterniza vidas, forçada pelo racismo e a violência estatal. 

BRASIL. Decreto nº 8.767, de 11 de maio de 2016. Promulga a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, concluída em 20 de dezembro de 2006. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 11 maio 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/d8767.htm. Acesso em: 29 ago. 2025.  

 

CRIOLA. Coleção Criola: O tratamento jurídico dos crimes de racismo no Brasil – Racismo, Violência de Estado e Sistema de Justiça: o caso Mães de Acari. [S.l.]: Criola, 2025. Disponível em: https://criola.org.br/wp-content/uploads/2025/06/Colecao-Criola-O-tratamento-juridico-dos-crimes-de-racismo-no-Brasil_Racismo-Violencia-de-Estado-e-Sistema-de-Justica-o-caso-Maes-de-Acari-.pdf. Acesso em: 29 ago. 2025. 

Desaparecimento forçado: vidas interrompidas na Baixada Fluminense/ Organizadores Adriano Moreira de Araujo… [et al.]. – Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2023. 

 

INICIATIVA DIREITO À MEMÓRIA E JUSTIÇA RACIAL. Boletim Especulação Imobiliária e Desaparecimentos Forçados. [S.l.: s.n.], 2025. Disponível em: https://dmjracial.com. Acesso em: 29 ago. 2025. 

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