22/11/2023

Artigo: Mulheres negras levam a sério o debate público

Lúcia Xavier, Diretora-executiva de Criola, organização da sociedade civil com 30 anos de trajetória na defesa e promoção dos diretos das mulheres negras

Thula Pires, Professora de direito constitucional da PUC-Rio

STF deve reconhecer que vivemos sob intensa e massiva violação de direitos.

Em 2020, após o ministro Luiz Fux tomar posse como presidente do Supremo Tribunal Federal, diferentes organizações de mulheres negras enviaram carta pública cobrando ações do sistema de justiça para o enfrentamento ao racismo patriarcal cisheteronormativo. Renovávamos nosso compromisso com a Constituição, o direito à vida, o reconhecimento pleno de nossa humanidade e a valorização das diferenças. Reivindicávamos um pacto republicano por justiça, equidade, solidariedade e pelo bem viver.

Nossas demandas permanecem sem a resposta adequada. O reconhecimento dos nossos direitos continua a depender da vigilância e do ativismo do movimento de mulheres negras. E piorou com as violações de direitos humanos na pandemia de Covid-19 e a violência desproporcional acumulada pela ação e omissão do governo federal de 2018 a 2022.

A violência e o descaso não param. Nós, tampouco. Lutamos para que a Convenção Interamericana contra o Racismo fosse internalizada pelo Estado brasileiro, criando um novo marco constitucional de combate ao racismo. Articulamos com partidos políticos e a Coalizão Negra por Direitos a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 973, pedindo ao STF que reconheça a letalidade contra pessoas negras e o racismo institucional como um “estado de coisas inconstitucional”.

O Supremo pretendeu decidir sobre nós, sem nós. No último dia 16 de novembro, o ministro Fux indeferiu a participação de várias organizações negras como “amicus curiae” no julgamento da ADPF. Com essa decisão, o instituto de “amicus curiae”, criado para garantir a democratização dos debates, perde seu fundamento, transformando-se em mais um instrumento de bloqueio institucional à nossa participação.

O “estado de coisas inconstitucional” em toda sua extensão de negação de direitos básicos não poderia estar mais bem caracterizado. Nesta terça-feira (21), um dia antes da data marcada para o julgamento da ADPF 973 no STF, Fux voltou atrás e admitiu a participação das entidades do movimento negro e de mulheres negras como “amicus curiae”. A reconsideração feita um dia antes do julgamento não blinda o Supremo de críticas, pois reatualiza as formas de bloqueio institucional à participação das entidades negras na defesa por direitos.

A relevância para o debate das organizações negras que se habilitaram sempre foi inegável, mas seu reconhecimento tardio configura uma estratégia de desmobilização e a falta de compromisso com a participação efetiva e em condições paritárias.

Resta saber se a Suprema Corte seguirá nessa toada ou se vai reconhecer publicamente que se vive sob intensa e massiva violação de direitos fundamentais de pessoas negras, por ação ou omissão dos poderes públicos, oferecendo uma ação coordenada, com o respeito à participação da população negra, das suas organizações e movimentos, para superação do quadro generalizado de violência racial e sexual.


TENDÊNCIAS / DEBATES

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Artigo publicado originalmente por Folha de São Paulo, em 22/11/2023.

Crédito da fotografia em destaque: Folha de São Paulo

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